Existem os originais (com seus preços desmedidos), as cópias (com sua qualidade dúbia e sua intrínseca cafonice) e os "inspired" (que eu chamo de genéricos).
Estou falando de objetos em geral, principalmente itens de vestuário (bolsas, roupas, sapatos).
Na internet, vi calorosas defesas dos direitos do designer. Se ele não for devidamente remunerado, que incentivo terá para criar? Logo, falsificações deveriam ser severamente combatidas, o que faz certo sentido. Mas não demorei para perceber que marcas caras, como as Arezzos da vida, copiam descaradamente os lançamentos europeus (sem dar crédito algum, claro) e vendem seus artigos a preços elevados (não tão exorbitantes quanto os originais, mas bem longe do alcance da maioria da população). Ou seja, as próprias corporações imitam umas às outras na cara dura.
Aí, faz como? A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. Boas soluções de design não deviam ficar restritas a uma parcela mínima da população (os ricos), nem financiar crime organizado e poluir o meio ambiente (as falsificações).
Então vamos de genéricos, uai! Boas ideias reproduzidas por outros fabricantes, sem a horrorosa logomarca. Meu All Star não é da Converse e meus óculos aviador não são da Ray-Ban. Gosto do estilo, mas não faço propaganda gratuita por aí. E paguei o preço normal para um par de tênis de lona e para óculos escuros sem grau.
* * *
Pirataria cultural: aprovo. Cabe aí uma longa discussão sobre autores e editoras/produtoras de menor porte. Desses eu acho que vale a pena adquirir.
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Eu, Etiqueta
Carlos Drummond de Andrade, 1984
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome… estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.